Fragmentos de O Réptil Melancólico
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O menino Miguel caçava tigres em seu quintal. Quando não o fazia, construía diálogos imaginários entre uma vaca e um hipogrifo. Ocupava-se como podia da abundância de tempo que se tem na infância. Não tinha autorização para sair de casa, e toda a sua vida era uma gigantesca e fantasiosa solidão. A companhia da chuva? Certamente, pois era uma companhia sabida por todos. As vozes da chuva caindo. Conversando com os velhos da casa, com os mortos da casa. Ou em lamentosos monólogos. Porém, tratava-se de uma companhia desigual. Mais companheira da eternidade de que do tempo da vida. Como não conhecia, de fato, o mundo, com sua combustão e com seus metais, acostumava-se àquela lenta e lesta eternidade. Acostumava-se à sucessão das horas, com seus tamanhos variados; à sucessão das almas, na sua procissão de venturas; à sucessão dos peixes, que flutuavam no céu com a minúcia de sua estranha felicidade.
(…)
O pai de Miguel levantou-se pela madrugada, àquele dia, e colocou numa mochila o que julgava ser o básico necessário para sua existência. Apenas trinta anos mais tarde Miguel e sua irmã Isabel descobrirão que esse básico incluía uma foto dos dois. Sabê-lo foi, certamente, uma dessas revelações que reorientam todo o passado vivido, mas que não têm poder algum de refazer a história.
Isabel indaga ao irmão se espera que alguma coisa diferente aconteça, na continuidade de tantos dias – insignificantes, pensava, sem ousar, de fato, classificá-los assim. Miguel responde que não saberia o que esperar. Ocupava-se como podia da abundância de tempo que se tem na infância, a qual se torna mais variada e caudalosa quando se tem mais um pouco de idade.
Isabel comenta que a geração de seu pai teve causas e que a geração de seu avô teve desinências. Constata que sua geração nada tem de muito interessante a fazer ou dizer. Resta-lhe jogar damas com a história.
(…)
Não sei se já tentou jogar o xadrez contra um espelho. A diversão que há nisso é pequena, mas suficiente para que nos distraia quando nos falta a companhia da solidão. Ocorria de fazê-lo, antes de passar a ter a companhia do senhor João ao tabuleiro. Depois de uma viagem a Roma, precisamente ao castelo de Bomarzo, situado nos arredores dessa cidade, passou o senhor João a acreditar nas criaturas deste tipo que sou, monstro como me mostro, dragão de pedra, réptil melancólico, preso à uma condição biológica que é simples mas que se completa com uma condição existencial das mais amplexas, por ser sujeita a uma ontologia mitológica, embora nós, os mitos, é evidente, não levemos à sério as mitologias. Uma condição que se completa complexa, portanto, como me posso ser. De qualquer forma o fato é que, depois dessa viagem a Roma e ao reino de Bomarzo, o senhor João passou a aceitar, sem relutância, a minha companhia. E depois disso passamos a jogar xadrez todas a tardes, em seu gabinete.
Nessas ocasiões, durante o jogo, criamos o hábito de debater os temas correntes da política internacional e da economia. Ele admirava, em minhas opiniões, minha natural capacidade em pensar a história como uma circunstância dramática por inteiro, enquanto que, para si, a história se compunha de circunstâncias dramáticas fechadas em eventos. É a história que é dramática, eu dizia, enquanto ele, afeito ao tradicional otimismo dos humanos, sempre cria que a história possuía momentos dramáticos, eventuais, dentre outros momentos de, digamos, na falta de melhor termo para dizê-lo, progresso. Porém, ele compreendia-me, e, como disse, admirava minha percepção. Talvez porque minha percepção lhe abrisse novos horizontes, na evidência de que são excessivos os horizontes humanos, como se sabe e como temos visto.
E então, um dia, durante uma partida de xadrez em que eu compunha uma arrojada defesa Siciliana in quarto, ele indagou sobre a história de nossa cidade,
“Tu a percebes então como, digamos, uma coisa só?”,
Nós, os dragões, só compreendemos a história como um fato único, um fato total e absoluto, e é por isso que só podemos historiar, ou narrar o passado, utilisando uma palavra apenas, uma palavra que resuma a história inteira,
“A qual seria, quando falam desta província?”,
Catástrofe.
(…)
Não se vai pedir a Deus que use esferográficas para anotar suas leis universais ou o décimo primeiro mandamento. Da mesma forma, não se vai imaginar que uma nova aparição da Virgem Maria ocorra num estacionamento de shopping center ou entre os corredores de um supermercado qualquer. Essas coisas requerem uma nobreza distante e um penhor de mito.
Pode ser um vício de linguagem ou de classe social, mas é preciso haver territórios para que, antes, haja ontologias.
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De Fábio Horácio-Castro, O réptil Melancólico. Rio de Janeiro: Grupo Editorial Record, 2021.
Versão Kindle: R$ 15,00. Versão impressa: R$ 50,00.